segunda-feira, 13 de maio de 2013

A emocionante caçada de tatu

A emocionante caçada de tatu

Cesar Vanucci*

“Se o tatu der a cara na barraca,
sapeque uma bordoada no cocuruto dele...”
 (Conselho do caçador mais experiente)

Ficou todo alvoroçado com o anúncio do amigo: “Sábado, você vai com a gente!”
Já ouvira, dezenas de vezes, os relatos dos companheiros de roda, no clube que frequentava com a família, sobre as emocionantes caçadas de tatu que, volta e meia, empreendiam. O assunto dominava as ociosas manhãs de domingo, regadas a batida de limão e torresmo, lá do Campestre. Entusiasmava-se, igualmente, com as narrativas sobre pescarias e caçadas que tinham por alvo o abate de outros exemplares de nossa diversificada fauna. Mas nunca soube explicar a razão, nada o impressionava tanto, nesse sedutor campo de experiências, como a apregoada caçada de tatu. Jamais participara de uma. Para nos conservarmos fiéis à verdade, a não ser no cinema, jamais botara o olhar em qualquer caçada. Mas, igualmente em abono da verdade, nunca ninguém se preparara tão bem psicologicamente para uma aventura do gênero.

Já contara e recontara, num sem número de ocasiões, o sonho que tivera depois de um jantar onde comera perdiz abatida por vizinho caçador. Surpreendera-se no sonho convenientemente aparelhado para fascinante jornada. Botas reforçadas, protegidas por perneiras. Calças curtas, blusão do tipo que aquele governante meio zureta quis, nos anos 60, impor aos funcionários públicos. Capacete de fibra, lenço pendurado no pescoço à moda boiadeira, rifle suíço com mira telescópica, coleção completa de pios, berrante, cartucheiras dispostas “a la Pancho Vila” recheadas de balas “dundum”. Ao redor, aguardando a sua palavra de ordem, dúzia e meia de ajudantes, envergando tangas estampadas, os pés descalços. Ao alcance das mãos enormes, esparramados pelo chão, todos os petrechos de um safári igualzinho ao que foi mostrado numa fita de John Wayne passada numa savana do Quênia. Viu-se envolto em atmosfera africana. Nervos tensos, ao jeito dos exploradores ingleses, permaneceu na expectativa de um ataque Whatusi. Mas cedo acabou se convencendo – o que se revelou confortador para seus brios nacionalistas – de que a paisagem percorrida era, no duro mesmo, a da Mata do Jambreiro. De repente, não mais do que de repente, ainda no sonho, um enorme tatu enquadrou-se na mira de tiro. Apertou o gatilho da Winchester. Um estampido seco e um baque surdo, como nos livros de bolso policiais. Um tatu de dimensões descomunais, duzentos quilos, exemplar animal magnífico egresso de alguma gravura de livro de paleontologia, entregue ao metódico descarnamento dos indígenas ululantes. O sonho findava aí.Todas as vezes que terminava de contar a história, ao riso desbandeirado, se recordava de que, já em sonho, demonstrava uma condição essencial para exercer em plenitude e com estrito senso profissional o papel ardentemente almejado de caçador: uma irrefreável vocação para relatos extravagantes.
Para seus companheiros caçadores a sua presença atenta assegurava a tranquilizadora certeza e a gostosa sensação de que poderiam contar sempre com uma platéia atenta e deslumbrada. Daí o fato de procurarem-no, prioritariamente, nas reuniões do Clube, para o noticiário em primeira mão das emoções vividas nas últimas idas ao campo. Para um contador de casos, como para um artista, nenhuma reação mais disputada do que a expressão de deslumbramento afivelada na cara do freguês escolhido para ouvinte.

O convite para a caçada deixou-o, por conseguinte, comovido e com ligeiro baticum. A preparação se fez rigorosamente de acordo com o figurino. Ótima oportunidade para exercitar os conhecimentos adquiridos na leitura de instrutivos manuais. Do traje ao armamento, com passagem pela matulagem e rotunda capanga contendo preparados anti-malarígenos e injeções antiofídicas, polivalentes e anticrotálicas (recordava-se bem das recomendações acerca de cautelas médicas), nada permaneceu nos preparativos ao desabrigo de zelosa supervisão.
Chegado o grande dia, acordou mais cedo. Falar verdade, nem dormiu direito, tamanha a emoção. Os companheiros prometeram pegá-lo as quatro da matina. Mas só apareceram às 6h30m. Com o pessoal já distribuído por duas caminhonetes, ele observou, num relance, que nenhum deles se apresentava munido do instrumental necessário para enfrentar uma caçada de tatu dentro dos requisitos técnicos consagrados. Mas, como a expectativa em torno do grande momento era forte por demais, ele acabou preferindo deixar passar a vontade de lançar um reparo que traduzisse sua estranheza.
Seis barracas de lona foram armadas na área escolhida para a caçada, uma nesgazinha de terra próxima a um riacho, inteiramente desprovida de vegetação. Cada qual cuidou de se arranchar como pôde. Aquele ali se despejou sobre a cama de campanha, com o respectivo mosquiteiro, garrafa de uísque no chão, e passou o dia lendo “Vila dos Confins”. Dois outros adernaram e, a tirar base pela roncaria que aprontaram, dir-se-ia até que na cidade andavam sem poder conciliar o sono há semanas. Outros dois, cara de malandros irrecuperáveis, refugiaram-se em barracas privativas, acompanhados de duas desajustadas sociais que haviam levado a tiracolo, contrariando as regras do tratado geral de caçadas, constante de um édito real baixado à época de Ricardo Coração de Leão. De vez em sempre, ruídos de taças e vozes risonhas davam a temperatura do frege que rolava naquelas bandas. Um outro caçador se mandou para a beira do rio, a vara de pescar displicentemente lançada, sem intenções sérias de apanhar peixe, e deixou o tempo fluir inebriado com as cançonetas italianas que extraía de uma vitrola portátil. Nos momentos em que soavam apenas os acordes da orquestração, com evidentes desvantagens para os tímpanos alheios, dava uma de êmulo de Luciano Pavarotti, a orquestra filarmônica de Milão garantindo o suporte musical daquele solo de um artista incompreendido. Caçada que é bom, neca de pitibiriba. Nem de tatu, nem de qualquer outro exemplar da imensa fauna silvestre.

O nosso amigo, como é fácil de avaliar, entrou em pânico diante do desconcertante quadro, mas foi-se aguentando enquanto pôde. Com o sol ameaçando deixar o firmamento, o jantar em véspera de ser servido, a hora do repouso chegando e com ela, transcorridas já 48 horas da caçada, a proximidade da volta à cidade, marcada para a manhã seguinte, ele resolveu, finalmente, num desabafo duramente reprimido, arriscar a pergunta tantas vezes ensaiada durante todo o tempo A fisionomia descomposta por inocultável desalento, procurou o amigo responsável pelo convite para a caçada:
- Escuta aqui, ó meu, que hora a gente vai caçar tatu?
Ao que o amigo, sorvendo outro gole do legítimo e sem se dar ao trabalho de levantar os olhos do livro, castigou:
- Deixa pra lá, siô. Não seja um desmancha-prazer. A gente trouxe disco, livro, música, boa comida e bebida, barraca. Eles lá, trouxeram até mulher. Estamos sorvendo os ares do campo, longe da poluição, do trânsito maluco da cidade e das aporrinhações domésticas. Arranche-se, pegue um pedaço de pau e se algum tatu metido a besta resolver botar a cara perto da barraca, sapeque uma bordoada no cocuruto dele.

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