A emocionante caçada de tatu
Cesar Vanucci*
“Se o tatu der a cara na barraca,
sapeque uma bordoada no cocuruto dele...”
(Conselho do caçador mais experiente)
Ficou todo alvoroçado com o anúncio do amigo: “Sábado, você vai com a gente!”
Já
ouvira, dezenas de vezes, os relatos dos companheiros de roda, no clube
que frequentava com a família, sobre as emocionantes caçadas de tatu
que, volta e meia, empreendiam. O assunto dominava as ociosas manhãs de
domingo, regadas a batida de limão e torresmo, lá do Campestre.
Entusiasmava-se, igualmente, com as narrativas sobre pescarias e caçadas
que tinham por alvo o abate de outros exemplares de nossa diversificada
fauna. Mas nunca soube explicar a razão, nada o impressionava tanto,
nesse sedutor campo de experiências, como a apregoada caçada de tatu.
Jamais participara de uma. Para nos conservarmos fiéis à verdade, a não
ser no cinema, jamais botara o olhar em qualquer caçada. Mas, igualmente
em abono da verdade, nunca ninguém se preparara tão bem
psicologicamente para uma aventura do gênero.
Já
contara e recontara, num sem número de ocasiões, o sonho que tivera
depois de um jantar onde comera perdiz abatida por vizinho caçador.
Surpreendera-se no sonho convenientemente aparelhado para fascinante
jornada. Botas reforçadas, protegidas por perneiras. Calças curtas,
blusão do tipo que aquele governante meio zureta quis, nos anos 60,
impor aos funcionários públicos. Capacete de fibra, lenço pendurado no
pescoço à moda boiadeira, rifle suíço com mira telescópica, coleção
completa de pios, berrante, cartucheiras dispostas “a la Pancho Vila”
recheadas de balas “dundum”. Ao redor, aguardando a sua palavra de
ordem, dúzia e meia de ajudantes, envergando tangas estampadas, os pés
descalços. Ao alcance das mãos enormes, esparramados pelo chão, todos os
petrechos de um safári igualzinho ao que foi mostrado numa fita de John
Wayne passada numa savana do Quênia. Viu-se envolto em atmosfera
africana. Nervos tensos, ao jeito dos exploradores ingleses, permaneceu
na expectativa de um ataque Whatusi. Mas cedo acabou se convencendo – o
que se revelou confortador para seus brios nacionalistas – de que a
paisagem percorrida era, no duro mesmo, a da Mata do Jambreiro. De
repente, não mais do que de repente, ainda no sonho, um enorme tatu
enquadrou-se na mira de tiro. Apertou o gatilho da Winchester. Um
estampido seco e um baque surdo, como nos livros de bolso policiais. Um
tatu de dimensões descomunais, duzentos quilos, exemplar animal
magnífico egresso de alguma gravura de livro de paleontologia, entregue
ao metódico descarnamento dos indígenas ululantes. O sonho findava
aí.Todas as vezes que terminava de contar a história, ao riso
desbandeirado, se recordava de que, já em sonho, demonstrava uma
condição essencial para exercer em plenitude e com estrito senso
profissional o papel ardentemente almejado de caçador: uma irrefreável
vocação para relatos extravagantes.
Para
seus companheiros caçadores a sua presença atenta assegurava a
tranquilizadora certeza e a gostosa sensação de que poderiam contar
sempre com uma platéia atenta e deslumbrada. Daí o fato de
procurarem-no, prioritariamente, nas reuniões do Clube, para o
noticiário em primeira mão das emoções vividas nas últimas idas ao
campo. Para um contador de casos, como para um artista, nenhuma reação
mais disputada do que a expressão de deslumbramento afivelada na cara do
freguês escolhido para ouvinte.
O
convite para a caçada deixou-o, por conseguinte, comovido e com ligeiro
baticum. A preparação se fez rigorosamente de acordo com o figurino.
Ótima oportunidade para exercitar os conhecimentos adquiridos na leitura
de instrutivos manuais. Do traje ao armamento, com passagem pela
matulagem e rotunda capanga contendo preparados anti-malarígenos e
injeções antiofídicas, polivalentes e anticrotálicas (recordava-se bem
das recomendações acerca de cautelas médicas), nada permaneceu nos
preparativos ao desabrigo de zelosa supervisão.
Chegado
o grande dia, acordou mais cedo. Falar verdade, nem dormiu direito,
tamanha a emoção. Os companheiros prometeram pegá-lo as quatro da
matina. Mas só apareceram às 6h30m. Com o pessoal já distribuído por
duas caminhonetes, ele observou, num relance, que nenhum deles se
apresentava munido do instrumental necessário para enfrentar uma caçada
de tatu dentro dos requisitos técnicos consagrados. Mas, como a
expectativa em torno do grande momento era forte por demais, ele acabou
preferindo deixar passar a vontade de lançar um reparo que traduzisse
sua estranheza.
Seis
barracas de lona foram armadas na área escolhida para a caçada, uma
nesgazinha de terra próxima a um riacho, inteiramente desprovida de
vegetação. Cada qual cuidou de se arranchar como pôde. Aquele ali se
despejou sobre a cama de campanha, com o respectivo mosquiteiro, garrafa
de uísque no chão, e passou o dia lendo “Vila dos Confins”. Dois outros
adernaram e, a tirar base pela roncaria que aprontaram, dir-se-ia até
que na cidade andavam sem poder conciliar o sono há semanas. Outros
dois, cara de malandros irrecuperáveis, refugiaram-se em barracas
privativas, acompanhados de duas desajustadas sociais que haviam levado a
tiracolo, contrariando as regras do tratado geral de caçadas, constante
de um édito real baixado à época de Ricardo Coração de Leão. De vez em
sempre, ruídos de taças e vozes risonhas davam a temperatura do frege
que rolava naquelas bandas. Um outro caçador se mandou para a beira do
rio, a vara de pescar displicentemente lançada, sem intenções sérias de
apanhar peixe, e deixou o tempo fluir inebriado com as cançonetas
italianas que extraía de uma vitrola portátil. Nos momentos em que
soavam apenas os acordes da orquestração, com evidentes desvantagens
para os tímpanos alheios, dava uma de êmulo de Luciano Pavarotti, a
orquestra filarmônica de Milão garantindo o suporte musical daquele solo
de um artista incompreendido. Caçada que é bom, neca de pitibiriba. Nem
de tatu, nem de qualquer outro exemplar da imensa fauna silvestre.
O
nosso amigo, como é fácil de avaliar, entrou em pânico diante do
desconcertante quadro, mas foi-se aguentando enquanto pôde. Com o sol
ameaçando deixar o firmamento, o jantar em véspera de ser servido, a
hora do repouso chegando e com ela, transcorridas já 48 horas da caçada,
a proximidade da volta à cidade, marcada para a manhã seguinte, ele
resolveu, finalmente, num desabafo duramente reprimido, arriscar a
pergunta tantas vezes ensaiada durante todo o tempo A fisionomia
descomposta por inocultável desalento, procurou o amigo responsável pelo
convite para a caçada:
- Escuta aqui, ó meu, que hora a gente vai caçar tatu?
Ao que o amigo, sorvendo outro gole do legítimo e sem se dar ao trabalho de levantar os olhos do livro, castigou:
-
Deixa pra lá, siô. Não seja um desmancha-prazer. A gente trouxe disco,
livro, música, boa comida e bebida, barraca. Eles lá, trouxeram até
mulher. Estamos sorvendo os ares do campo, longe da poluição, do
trânsito maluco da cidade e das aporrinhações domésticas. Arranche-se,
pegue um pedaço de pau e se algum tatu metido a besta resolver botar a
cara perto da barraca, sapeque uma bordoada no cocuruto dele.
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