Super-humano
Cesar Vanucci *
“A maior parte de nossa memória está fora de
nós...”
(Marcel
Proust)
A televisão vem mostrando
uma série surpreendente: “Os super-humanos”. São personagens de carne e osso
providos de faculdades especiais, no plano mental, na condição atlética, em
habilidades incomuns.
Há algumas décadas atrás
conheci alguém assim. Se ainda entre nós, estaria certeiramente atraindo as
câmeras dos produtores desse programa.
Os tempos eram outros. A
televisão não passava de experiência incipiente, coisa de estrangeiro. O rádio,
sim, era o veículo de comunicação com poder de penetração, mas limitado na
capacidade de cobertura dos acontecimentos em regiões distantes. O Brasil ainda
não havia despertado para as conquistas do desenvolvimento, incrementadas
sobretudo na “era JK”. Incontáveis registros de fatos relevantes passavam
desapercebidos, diferentemente do que hoje
ocorre, do grande público em escala nacional. Ficavam circunscritos a
ambientes mais fechados. Mesmo quando divulgados com intensidade, naturalmente
relativa, alcançavam ressonância reduzida, se consideradas as dimensões
continentais do país.
Nessa época, em ambiente
interiorano, fase da adolescência, tomei conhecimento do maior fenômeno de
memorização de textos de que já ouvi falar. O assim chamado “Salão Grená” da
PRE-5, Rádio Sociedade do Triângulo Mineiro, Uberaba, funcionava como um centro
cultural. Provido de 500 poltronas, localizado em ponto estratégico do centro
urbano, abrigava eventos artísticos, culturais, mesas-redondas, por aí. Para
boa parte das promoções realizadas havia cobertura radiofônica, o que ampliava,
consideravelmente, a divulgação. A emissora, pioneira na região, pertencia ao
grupo “Lavoura e Comércio”, criado pelo saudoso jornalista Quintiliano Jardim.
O jornal diário circulou por mais de cem anos, até o comecinho deste século.
Colegial fissurado
em manifestações culturais, vi atuar, no local, numa série de aplaudidas
audições, um cidadão dotado de capacidade inigualável para memorizar textos.
Jamais tive notícia, nem antes nem depois de conhecê-lo, de ninguém com
predicado – ou que outro termo possa existir para classificar seu desempenho –
em condições ligeiras de igualá-lo naquilo que fazia.
Ele reproduzia, com
absoluta exatidão, palavra por palavra, detendo-se nas pausas recomendadas pela
pontuação, textos inteiros, de qualquer natureza, verso ou prosa, com ou sem
menção de números, lidos cuidadosamente por outrem. Discursos, poemas, trechos
de romance, trabalhos técnicos, tudo era absorvido com precisão. E, ao depois,
repetido. A reação da platéia oscilava entre a perplexidade e o deslumbramento.
Lembro-me bem de que, ao anunciá-lo, o mestre de cerimônia narrava saborosas
historietas, alusivas a demonstrações dadas pelo nosso personagem, em
respeitáveis ambientes freqüentados por líderes políticos e intelectuais de
renome. Nem bem o expositor, debaixo de aplausos, dava por finda a fala nesses
encontros e já o cidadão dono de memória prodigiosa surgia em cena, solicitando
permissão para usar da palavra. Em tom sério, pondo todo mundo confuso e
nervoso, “garantia” que o texto apresentado não passava de “descarado plágio”.
Tanto isso “era verdade”, acrescentava ele, confessando-se o “verdadeiro autor”
do texto, que iria repeti-lo, ali, naquele mesmo momento, parcial ou
integralmente, sílaba por sílaba. A atmosfera pesada reinante só se desfazia
quando, entre risos e pedidos de desculpas, surgia a explicação acerca dos
inacreditáveis dons de memorização do “inoportuno” aparteante.
Nunca me esqueci do nome
desse cidadão, tão vigorosa a impressão que deixou registrada, de suas
habilidades incomuns, no espírito dos que testemunharam essas proezas nas
diversas vezes em que se apresentou no “Salão Grená”: Eurícledes Formiga. Os
anos se amontoaram, nada mais ouvi contar, adiante, a seu respeito. Até que, algum
dia, um conhecido falou-me da existência em Belo Horizonte de
um centro espírita que traz esse nome como patrono. Imaginei naturalmente
tratar-se da mesma pessoa. Mas, tanto quanto me recorde, naqueles tempos, a
fantástica condição de produzir “reprografia cerebral” de Euricledes,
reconhecida como inexplicável e extraordinário fenômeno, não se achava
vinculada a nenhuma atividade de cunho religioso.
Comentei o fato com um
grande amigo e dele colhi, a respeito do Euricledes Formiga, um sugestivo
depoimento, que prometo reproduzir na sequência.
* Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)
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