segunda-feira, 9 de maio de 2011

Artigo do Acadêmico César Vanucci

Cartas do médico Guimarães

 Por CÉSAR VANUCCI
“Uma pequena preciosidade.”
(José Dias Lara, escritor, estudioso da obra de Guimarães Rosa)


R
etorno a um personagem fascinante. Correspondência de um amigo traz Guimarães Rosa de volta a este espaço. Como devem se recordar os leitores, em três crônicas sucessivas – “Guimarães Rosa”, “Confissão de Guimarães” e “Acontecências paranormais” -, andei deitando falação acerca dos insuspeitados, singulares, e, como se viu depois, confessos dons de percepção extrasensorial do genial escritor. As considerações alinhadas se basearam num artigo, de 40 anos atrás, em que o próprio Guima narra suas incríveis experiências nessa enigmática seara. O artigo me foi encaminhado por um grande amigo, o escritor e historiador Luiz de Paula Ferreira, um dos maiores empresários do ramo têxtil da América Latina.

Das crônicas aqui estampadas tomou conhecimento o respeitado homem de letras José Dias Lara, ex-governador do Lions, educador emérito, membro da Academia Mineira de Leonismo, onde ocupa a cadeira que tem Guimarães Rosa como patrono. Estudioso das coisas ligadas ao encantador universo rosiano, Lara detém valiosas informações sobre a vida e a obra do autor de “Grande Sertão, Veredas”. Numa amável correspondência, registra sua surpresa diante do artigo de Guimarães: “O tal artigo, de 40 anos atrás – que desconhecia – talvez seja mais uma das excentricidades do velho Guima, que ele as tinha em bom número”. No desdobramento da mensagem, presenteia-me, conforme suas palavras, com “uma pequena preciosidade”.

Ouçamos de sua própria boca as explicações: “Sabe-se que Guimarães era de falar pouco e escrever muito, particularmente cartas: era um missivista de escol. E isto já fazia, bem antes de tornar-se o notável escritor que todos conhecemos. Ainda era o dr. João, médico em Itaguara, nos idos de 1932; são desse tempo as cartas de que lhe envio algumas cópias – uma pequena preciosidade – uma delas até com uma fórmula medicamentosa para manipular. Linguagem simples para seu povo muito simples. Eram os primeiros passos de um bom médico, que se fez grande nas letras nacionais.”

O destinatário de todas as cartas, redigidas pela ortografia da época, datadas de 1932, a caligrafia firme e desenvolta, é um senhor de nome Manoel, residente no Mambre, próximo a Itaguara, onde o médico Guimarães Rosa clinicava. Em tom assaz cordial, evidenciando o grau de amizade existente entre os dois, Rosa acompanha o tratamento de pessoa próxima ao companheiro Manoel. Indica procedimentos terapêuticos incluindo aí, até mesmo, receitas médicas caseiras, de uso corrente naqueles tempos. Abaixo a reprodução das duas primeiras cartas-receitas. As outras ficam para depois.
“Itaguara, 22 maio 932  Prezado Manoel,  Abraços, Seguem os apetrechos. Faça o serviço com jeito, e mande-me a ferramenta logo depois. Explique ao povo da casa o modo de usar os remédios.
Recomende quanto à hygiene. Mande fazer também uma lavagem intestinal. Será bom você mandar-me uma informaçãozinha por escripto. Recomendações aos seus. Abrace por mim o velho. Estou com saudade do agradável Mambre e, principalmente, dos seus bondosos moradores. Muito grato por todas as finezas; desculpe-me os incômodos. Do amigo   J. Guimarães Rosa”

“Prezado Manoel  Cumprimentos aos seus. Continue a mandar fazer as lavagens intestinaes, bem como as vaginaes. A doente deve tomar, na maior quantidade possível, chá de cabellos de milho adoçado. A alimentação deve ser reforçada, com prudência, porem. Um apertado abraço do amigo Guimarães Rosa.!




Receitas de Rosa





“... aplicar angús quentes no logar da dor.”
(Prescrição do dr. João Guimarães Rosa)

E

 sta crônica ocupa-se de textos inéditos de Guimarães Rosa datados de 1932. Não se trata, já vimos, de escritos literários, mas de mensagens coloquiais, em tom afetuoso, assinadas pelo médico dr. João Guimarães Rosa. Ele exercia a profissão em Itaguara, interior deste imenso país das Geraes. O destinatário, amigo dileto, era o fazendeiro Manoel Carvalho, chefe político conceituado na região. A fazenda Mambre, citada várias vezes nas correspondências, ficava localizada na divisa de Itaguara e Itatiaiuçu.

Em carta de 25 de maio de 32, Guima refere-se ao amigo como “um bom enfermeiro e um bom informador” e recomenda à paciente sob seus cuidados “lavagem intestinal” com “água fervida, ou cozimento de rosas”. Este o texto:
“Itaguara, 25 de maio de 932  Prezado Manoel, Um abraço apertado. Primeiramente, ardorosos parabens, pois você tem sido um bom enfermeiro e bom informador. Quanto à doente: Deve ir se alimentando com canjas, caldo de frango, mingáu de fubá com leite, café com leite, sopa de macarrão bem cozido, etc, porque a moléstia é demorada e a doente necessita de manter as forças. Mesmo sem appetite, deve insistir. Deve fazer nova lavagem intestinal, com litro de água fervida, ou cozimento de rosas. Vão novos papeis para lavagens vaginaes. A injecção não póde falhar nenhum dia  amanhã póde falhar a informação, só isso. Quando a febre estiver mais alta, a doente deverá tomar um banho morno de corpo todo, enxugando-se bem depois. Os remédios (poções) devem ser tomados sem interrupção, e, terminado o conteúdo dos vidros deve vir o portador para reformal-os. Continue: - Hygiene.... Hygiene.... si fôr possível. Abrace todos os seus em meu nome. Do amigo Guimarães Rosa.”
Na carta seguinte, 29 de maio, expressa muito carinho pelo pessoal da fazenda.

“Distinto Manoel, Gloria! Fico bem satisfeito de saber das melhoras apresentadas pela doente – melhoras devidas em parte aos cuidados enérgicos do amigo, que tem sabido informar-me magnificamente da marcha da moléstia. Si as dores nas pernas continuarem, veja si há alguma novidade no local dolorido (inchação branca e dura), pois pode tratar-se de uma phlebite puerperial. De qualquer maneira, caso a dôr continúe, a doente deverá manter-se em repouso rigorosissimo, podendo applicar angús quentes no logar da dor. No mais, continue, que está bem orientado. Distribua um punhado de abraços entre o pessoal do Mambre, sendo um abraço maior para o seu Chico e um outro para você. Até outra vez. Guimarães Rosa.”

Na missiva posterior (03.06.1932) Guimarães Rosa prescreve uma receita caseira, indicando os ingredientes da manipulação a ser feita.
“Prezadissimo Manoel  Cordiais cumprimentos. Seguem novos remédios para a enferma. É preciso que ella vá se alimentando bem, com as devidas cautelas, naturalmente, para que a causa não desande em vez de andar. Não deixe de mandar informações por mais uns três dias, principalmente temperatura e pulso. Mande fazer diariamente uma lavagem intestinal. E, fallo sem intuito de envaidecel-o, póde você estar certo de que a cura da doente deverá, em grande parte, ser agradecida ao enfermeiro. Pudesse eu ter sempre á mão um auxiliar assim! Quanto á crioula, si você quizer experimentar ainda, póde dar a ella: Uso interno Elatério  -  0,50 .....; Rhuibarbo preto  -  1,0 gr; Estr. de fel de boi  -  qsp para 20 pilulas. Dar 1 de 2/2 horas. Conjuntamente devem ser dadas umas 3 injecções de óleo camphorado. Provavelmente o resultado será bom. Até breve. Abraça por mim a todos os mambrenses, principalmente o velho. Do amigo Guimarães Rosa  Itaguara, 3 de junho de 932.”

Interessantíssima, sem dúvida, essa série de cartas-receitas que o professor José Dias Lara, estudioso da vida e obra de Guimarães Rosa, traz ao conhecimento dos leitores por intermédio deste seu admirador e amigo.

* Jornalista (cantonius@click21.com.br)

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